Pedras Rolantes
Há um diálogo no filme Um Completo
Desconhecido a me encantar por levar longe meu pensamento. Bob Dylan e Sylvie Russo (personagem da vida
real do cantor que teve o nome alterado) estão conversando e ela comenta sobre
alguém que se encontrou - não é uma transcrição precisa da cena, mas é o que
vem na minha memória e não tenho como acessar o filme para verificar isso. Ao
comentário de Sylvie, Bob diz algo que na minha lembrança aparece assim:
ninguém é um sapato velho para ser encontrado. Objetos são encontrados. Pessoas
não encontram a si mesmas. Pessoas estão sempre em transformação.
O filme retrata o início da carreira
do cantor e por si só já é interessante, indicado e inspirador, afinal, é
ninguém menos que um dos grandes músicos do planeta prestando atenção em ser
ele mesmo, consciente que se pode ser uma coisa hoje e outra amanhã, não
deixando de ser a mesma pessoa.
São vários os motivos, além dessa
cena citada, que me fazem gostar tanto da narrativa. Entre eles o fato de ser
biográfico, ter interpretações maravilhosas, ter o visual tão bonito dos anos
60 e 70, e as músicas daqueles tempos – até hoje as canções daquela época comovem,
me mobilizam, me embalam.
Muito mexeu comigo o dito, lindo e significativo
diálogo, que parece ser tão despretensioso, mas obviamente não estava ali à
toa, pois tudo nas grandes obras é bem pensado e cumpre uma função. Esse trecho amarra toda a história e uma das pontas da narrativa vai aparecer
lá no fim do filme, não como uma revelação e sim como um processo, um caminho
com ponto de partida e chegada, porém em eterna continuidade. Não estamos
sempre partindo de algum ponto em direção a outro?
Como pessoas em transformação, o
filme é uma levada da construção de uma ideia enquanto conta como Bob Dylan vai
do folk ao rock. Não conto mais pra não cair em spoilers.
Vejo tanta beleza nesse diálogo, pois faz muito sentido ao me transportar para algo que sempre lembro nos
atendimentos como terapeuta sistêmica construcionista, mas também, é claro, nas
minhas relações da/com a vida desde que me propus a estudar o pensamento
sistêmico e suas complexidades: não somos (claro que também somos. Como não seríamos?),
mas sim estamos.
Quando afirmo categoricamente que
alguém é ciumento, por exemplo, estou cedendo à tentação de rotular, de
taxar, de encerrar uma visão a respeito de um fato, de um assunto, de uma
atitude ou de alguém. Mas se me convido a pensar que essa pessoa está sentindo
ciúmes, eu não a diminuo somente a uma afirmação ou a uma visão reducionista. Eu
amplio.
Estar alguma coisa pressupõe chance de
mudança, de transformação. Estar é deixar uma porta aberta. Estar é
movimento, rolagem. Não estamos muito habituados a pensar dessa forma. Então como
é pensarmos assim daqui por diante?
Eu não sei – e isso não importa - se
na vida real Bob Dylan disse essa frase. Pode ser que não. Mas uma de suas mais famosas
composições também é um diálogo e o refrão tantas vezes tocado traz uma
pergunta a manter essa reflexão:
How does it feel
How does it feel
To be on your own
With no direction home
Like a complete unknow
Like a rolling stone?
Como é que é
Como é que é
Estar sem ninguém
Sem um caminho pra casa
Como uma total
desconhecida
Como uma pedra que rola?*
*tradução de Caetano W. Galindo para o livro Bob Dylan –
Letras (1961 – 1974) da Companhia das Letras
Um completo Desconhecido
Filme de 2024 dirigido por James
Magold. Retrata o início da carreira do músico Bob Dylan. Com Thimothèe Chalamet,
Elle Fanning, Monica Barbaro, Edward Norton.
Acabei de ler o blog e adorei a reflexão do ser e estar. É algo que reflito muito comigo mesma tbm… são verbos muito presentes na minha vida e que tem um grande impacto, por como escolhi viver… itinerante. Eu sou eu mesma, e hoje estou longe.. mas não deixei meu ser pra tras, ele veio comigo. Meus amigos e família, estão longe, mas não deixaram de ser quem são. Eu amo o conceito do estar sempre ser movimento e transformação! É libertador!!
ResponderExcluirLuiza, que maravilhoso isso que você escreveu! E eu, como sua tia rsrs, posso dizer o quanto essas vivências suas são inspiradoras!! Obrigada pela leitura e por compartilhar essa beleza aqui!
ExcluirLinda sua reflexão sobre ser e estar, acho que é bem isso mesmo, ora somos, ora estamos, por exemplo, sobre a felicidade, essa sua reflexão de hoje me fez lembrar de uma música das antigas que tem uma frase que sempre me faz refletir quando penso ness
ResponderExcluira "tal felicidade" e que diz assim :"felicidade não existe, o que existe na vida são momentos felizes". E acho que o ser ou estar se encaixa bem nesse contexto, será que existe alguém que seja sempre feliz ou que esteja feliz por alguns momentos na vida apenas?? O que vc acha?
Eu acho que gostei demais do que você falou, Ân! Dizem que a gente só valoriza a felicidade porque existem os dias difíceis. Você falou de música, eu falo de Guimarães Rosa que diz que a vida esquenta e esfria.
ExcluirObrigada por ler e trazer essa reflexão poética!