A pedra, ou uma pedra, e silêncio
A verdadeira dor é diferente de uma verdadeira dor. É da Língua Portuguesa tornar algo muito específico quando se coloca um artigo definido na frase, claro. Nessa expressão, o artigo me dá a sensação de que A verdadeira dor esteja excluindo as demais dores da verdade ou da intensidade. O artigo indefinido uma não especifica de qual está falando e parece não deixar de fora as demais dores.
Não quero discutir quanta verdade há nisso tudo. Apenas me
coloquei a pensar porque meu marido falou que se fosse traduzir ao pé da letra
o título do filme - A Real Pain - não seria A verdadeira dor, mas algo como Uma
dor verdadeira. Dailer não é tradutor e, novamente, o foco não é esse. O
comentário, porém, foi bom porque me fez ter essas dúvidas sobre a
possibilidade de definir o que seria a verdadeira dor.
Enquanto reflito, falemos do pontapé dessa conversa dado pelo
filme A verdadeira dor, que tem roteiro, direção e atuação de Jesse Eisenberg
como Dave, que é primo de Benji, interpretado por Kieran Culkin.
Os dois primos quase irmãos são judeus e se reencontram para
embarcar numa viagem à Polônia. Eles vão conhecer a cidade e a casa da avó
Dory, sobrevivente do Holocausto. Logo são percebidas as diferenças marcantes entre
os dois. Dave é contido e ansioso. Benji é o oposto. Dave é casado e tem um
filho. Benji parece solitário. Vovó Dory era a sua pessoa preferida e após sua
morte, Benji mergulha numa depressão.
Esses detalhes e outros vão sendo contados aos poucos, entre
um e outro diálogo entre os primos e os turistas que, como eles, estão
visitando alguns pontos simbólicos da cidade. Entre esses lugares, o campo de
concentração Majdanek, surpreendentemente tão próximo da cidade. Esse ponto
específico da narrativa, em tom muito respeitoso, nos convida a pensar sobre como
as barbáries acontecem logo ao lado de onde a vida continua correndo leve e
quase o tempo todo feliz.
O filme se propõe a isso, aliás. A nos fazer ver como o que
parece ser oposto é também convergente. A vida dual. Diversão e tristeza. A reconstrução da
cidade polonesa que sofreu com a guerra e algumas marcas de destruição
preservadas. A fantasia com a história e o mergulho no real do passado. Dave e
Benji.
A narrativa tem pontos de silêncio muito bonitos, dando
espaço para as belas e difíceis imagens falarem por si. Mas tem aquele jeito leve
e gostoso de trazer algo complexo por meio do corriqueiro, como quando Benji
fala sobre os pés de Dave. Além dos formatos dos dedos por herança genética,
que mais é possível herdar da vovó Dory? Certamente as dores daquela mulher que
precisou de “10 mil milagres para sair viva da Polônia e chegar nos Estados
Unidos”.
Como uma experiência tão grandiosa e marcante como as vividas
pelos povos perseguidos, barbarizados, como judeus e negros escravizados, por
exemplo, não influenciaria na vida de seus descendentes, não deixaria heranças
por vezes amargas? A pedra que Dave coloca em sua casa me diz sobre isso.
Vejo as famílias como galhos de árvores: seus integrantes são
da mesma matéria, mas eles se ramificam de um jeito diferente um do outro.
Parecido, mas diferente. Dave e Benji são esses galhos que seguiram traçados
diferentes. E embora um grite mais a sua dor, não dá pra dizer quem sente mais
e de que forma - e é necessário competir nisso? Indiretamente, eles contam que apesar de tanto sofrimento
vivido pela avó, de tanta luta para que ficasse para trás todo um mundo de
injustiça e dor, as novas gerações também enfrentam as suas dores. As dores do
mundo atual.
E a dor de Dave, que gostaria de ser cativante como Benji,
ser afagado como Benji acaba sendo? E aquela contenção incômoda pra garantir
que tudo fique certo, perfeito, para que sua produtividade corresponda ao que
se pede? E quem pede? O mundo atual ou o fato de não poder esmorecer sendo neto
de alguém que venceu o pior cenário? Certamente as duas coisas e outras mais,
como a dor de ter visto Benji caído no sofá.
Benji aparenta estar mais desorganizado, sem estrutura. Sem
pressa de voltar pra casa (será que tem casa?), preferindo ficar observando as
pessoas num lugar em que estão somente de passagem. E qual sua verdadeira dor?
Uma dor nunca é uma coisa só. Sempre está acompanhada dos nossos enroscos
internos. Há aquela dor tão triste e solidária à história da avó. A dor pela
falta que faz a presença do primo em sua vida.
Um retendo a dor. Outro tentando expulsá-la. Dois caminhos
iguais na infância com destinos tão diferentes.
Eu não sei sobre a sensação que tiveram Dave e Benji quando
chegaram a casa da avó. Mas aquela fachada tão simples com apenas uma porta
resume a minha sensação – e é sempre sobre a minha sensação que posso falar:
ali é o conhecido desconhecido. É a própria vida, que a gente conhece mais ou
menos, ouve falar, mas pra saber, só abrindo, olhando, entrando.
Voltando ao título: ele faz todo sentido. É provocativo. Escondido
nele estão algumas perguntas, como...Qual a verdadeira dor no meio disso tudo? Há uma
única verdadeira dor? Toda dor não é real?
Filme: A Verdadeira Dor (A Real Pain), de 2024
Roteiro e direção de Jesse Eisenberg, que atua no filme ao
lado de Kieran Culkin e grande elenco. Vale dizer que Emma Stone também está na
produção.
Quero ver novamente esse filme após ler o seu texto. Estou há vários dias pensando nesses primos e as possibilidades de reflexão que o filme me trouxe. Respeitando a devida proporção, me "vi" um pouco no jeito "folgado", divertido, barulhento e entrão do personagem Benji e de como esse jeito todo extrovertido possa ser pra ocultar alguma dor. Na relação com o filme (e novamente guardando as devidas proporções) a perda da Avó me fez lembrar da perda de um tio, que foi muito presente e importante pra mim na minha infância e juventude (com aquele carinho tosco e bruto da minha parte paterna ) e que eu talvez não tenha demonstrado e "sentido" a sua perda na época, no teor que a reflexão desse filme me fez reviver essa história, ainda mais após a leitura do seu texto. Ainda pensando se é a pedra ou uma pedra.
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