Narro, logo re-existo

 

Ontem fui fisgada por essa frase: “mas é o nosso talento narrativo que nos dá o poder de dar sentido às coisas quando isso lhes falta”. Fisgada e lançada diretamente um passado em que escrevia crônicas sobre meus filhos. Suas gracinhas, suas provocações, sobre o que eles e seus olhares sobre o mundo despertavam em mim. Mergulhei também no próprio presente com seus estranhamentos naturais da fase atual.

Meus filhos cresceram, eu, para meu espanto, óh, fui envelhecendo, mudando de profissão. Meu marido, o pai deles, também. A família seguiu enfrentando os percalços universais, como uma pandemia, além de cumprir a maratona com barreiras singulares, particulares, únicas de nosso grupinho.

Os filhos foram, saudavelmente, cavando suas individualidades. Enquanto isso, fui me esforçando para não cair na mania de fazer e falar coisas que eles não querem mais, não precisam mais. Mas não tenho alta performance nisso. Uma adulta de 22 anos, só porque tem cara de 15, não precisa que eu diga: “porque você não coloca seu vestidinho vermelho em vez de usar as mesmas calças jeans com camisetas?”. Um rapaz de 17 anos, maior que o pai, não quer que eu fique colando no quarto dele listas dos livros que ele precisa ler esse ano.

Então, ando me perguntando: se eu sei que não devo fazer isso, por que faço? Compreendi ainda essa semana, que parte disso é o aconchego de incorporar o jeito cuidador (uns dizem controlador) tão forte na minha família. Ele me é tão conhecido que é tão fácil vestir esse papel. Ainda mais quando ele é rebatido com outra característica gostosa da nossa família: o bom humor.

Parece bom....eu falo pro marido que não serei mais autoritária ainda que isso tenha, láááá no fundo amor e cuidado, e um minuto depois escapa da minha boca co-pilota um “dê seta e entra na faixa da direita pra virar naquela rua”. Aí eles rebatem com brincadeiras, com virar de olhos pra cima, com imitações hilárias e assim vai.  Parece bom, mas eles andam pondo limites.

Compreender sobre o conforto de ser a mesma de sempre me fez pensar: como descanso desse papel de cuidadora extrema para dar espaço pra cada um deles, me estressar menos (porque é óbvio que eles farão o que querem e não o que eu “sugiro”) e viver outras coisas que quero, posso e devo viver?

Foi quando essa questão estava pairando pela minha cabeça que fui pescada pela frase do começo do texto. Talvez eu precise voltar a me narrar para encontrar novos sentidos, novos significados, novas possibilidades e novos jeitos de estar nesse nosso momento.

O autor da frase é Jerome Bruner. Cheguei até Bruner, pois ele é uma das fontes de pesquisa e fundamentação do trabalho desenvolvido por Michael White: as terapias narrativas. White é um dos terapeutas de família maravilhosos que estudamos na abordagem construcionista.

A frase citada está no livro Fabricando Histórias – Direito, Literatura, Vida, de Jerome Bruner, Editora Letra e Voz. Aliás, a obra tem me encantado. Cada frase ali me enche de inspiração para pensar sobre a nossa capacidade de autocriação a partir da linguagem. Dá pra discursar muito sobre isso.

O fato é que quando nos narramos, nos conhecemos melhor. Bruner escreve assim: “Tomemos cuidado com respostas fáceis! Até a etimologia nos previne que “narrar” deriva tanto de narrare quanto de “conhecer de um modo particular” (gnarus) – ambos inevitavelmente emaranhados”.

Por enquanto fico com essa isca: que sentido dei à infância dos meus filhos e à nossa família quando eu escrevia sobre eles, sobre nós? E que sentido eu posso dar agora ao nosso presente quando narro nossas histórias? Pra descobrir, só narrando, escrevendo, contando histórias.


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